Entrevista – Cactek: “O streaming desvaloriza o artista”

Por: Renato Sanson

Fotos: Amanda Nunes

Músico entrevistado: Pedro de La Rocque (multi-instrumentista)

O Death Metal é mais que uma sonoridade, mas uma arte em si. Qual a sua relação com o Metal da morte e qual banda te despertou ir em busca deste conhecimento?

As primeiras bandas de death com as quais tive contato foram o Death, o Carcass e o Morbid Angel, todas por meio do Fúria Metal quando a MTV começou a passar aqui no Brasil no espectro UHF. Acho que o primeiro disco de death que comprei pela capa, sem ter visto um clipe ou ouvido antes, foi o “Slaughter of the Soul”, do At the Gates. Eu devia ter uns 14 anos ou coisa assim. Não é à toa que essas continuam sendo influências fortíssimas no meu trabalho até hoje.

Em geral, acredito que o death metal seja a vertente mais livre do metal, menos presa a fórmulas e regras. Claro que sempre haverá bandas pouco ou nada originais, tal como ocorre com qualquer tipo de música, mas, quando olhamos as genuínas, cada uma tem o seu jeito próprio de fazer a coisa. É inevitável que haja influências no som de qualquer banda — é assim que arte funciona, afinal — mas é muito fácil reconhecer se o que tá tocando é Nile, Obscura, Cannibal Corpse, Obituary etc. logo no primeiro minuto de qualquer faixa. Essa liberdade e esse espaço para ser genuíno são fatores muito importantes para mim. Lógico, também há a questão da agressividade, o elemento terapêutico de botar para fora ideias e sentimentos que, do contrário, ficariam me corroendo e ferrando a minha saúde física e mental.

Conte-nos a origem do nome Cactek e a criação do personagem Homem Cacto.

Eu queria um nome que fosse original e de fácil compreensão tanto no Brasil quanto fora, e também algo que remetesse aos trópicos, a lugares quentes. O cacto me pareceu uma ideia pertinente porque, além de ser uma planta de lugares assim, também tem o lance dos espinhos, da defesa contra elementos externos. Reconheço em mim essa necessidade de autoproteção do exterior e, como a minha intenção com o projeto foi, desde o início, criar material muito pessoal, fez sentido. Também achei relevante fazer menção à ideia de técnica, já que fazer música exigente nesse aspecto também era uma pretensão desde as fases mais incipientes do Cactek.

O homem-cacto veio, de cara, junto com a ideia do nome. Não só achei que funcionaria bem como personificação do Cactek, tirando o foco de mim e colocando o foco na ideia, como também serve para fazer alusão a bandas importantes que também têm mascotes, como o Iron Maiden com o Eddie e o Megadeth com o Rattlehead. O fato de eu estar trabalhando com o João Antunes Jr., um artista gráfico fantástico, também viabilizou a coisa.

2021 foi quando surgiu no cenário o projeto Cactek. A ideia inicialmente era uma one-man-band, o que em termos se mantém até os dias de hoje. Existe a possibilidade de se tornar uma banda completa em algum momento?

O Cactek, na verdade, começou em 2019. Mas foi realmente em 2021 que saiu o primeiro single e comecei a ter uma presença mais efetiva nas redes sociais. Faço questão de manter controle absoluto do Cactek porque fundei o projeto justamente para concretizar as ideias musicais que eu já carregava havia muitos anos, mas não conseguia fazer funcionar com bandas naquele formato tradicional. Sem contar que montar uma banda usual geraria uma demanda de lançamentos frequentes que acabaria por simplificar a música, e não é essa a proposta.

Acho importantíssimo trabalhar com pessoas profissionais, capazes de enriquecer o resultado final sem desvirtuar a coisa, e foi justamente isso que fiz com o Wildy, que teve total liberdade para bolar a bateria com o que ele achasse bacana — mas já entreguei as músicas totalmente estruturadas para ele, faltando mesmo só a bateria, e eu sabia que ele era um músico e instrumentista fantástico. O mesmo vale para o João, que fez a arte, e o Swanö, que masterizou e me deu orientações importantes durante a produção — os profissionais certos, nas funções certas, para concretizar, enriquecer e viabilizar o que eu estava fazendo.

Tenho muita vontade de colocar o Cactek nos palcos, mas isso também vai ter que acontecer dessa forma e, portanto, implicará custos para contratar uma galera boa e séria. Por exemplo, a minha intenção é manter o Wildy não só nos próximos lançamentos, mas também ao vivo — e ele mora no Rio Grande do Sul, ao passo que eu estou no Rio de Janeiro. Não sei onde vou encontrar o baixista e o outro guitarrista, e pode ser que os caras certos também estejam em outros estados, o que também acrescentará mais um elemento logístico à equação.

O meu plano é, por ora, focar na próxima leva de músicas, provavelmente num formato de álbum inteiro em vez de outro EP, e só depois começar a pensar na possibilidade de shows. Até porque cinco faixas não constituem material suficiente para um show extenso o bastante para justificar todo esse esforço e gasto.

“Sunrise In Hell” é o primeiro lançamento do projeto. Conte-nos mais a respeito do mesmo.

Esse EP consiste em todas as primeiras cinco músicas que fiz para o Cactek, e o material foi gravado à medida em que a composição e a pré-produção de cada faixa ficavam prontas. A ordem das faixas do EP, inclusive, também é a ordem em que as compus.

Eu próprio gravei as guitarras, o baixo e os vocais, ao passo que a bateria ficou a cargo de um baterista fantástico do Rio Grande do Sul chamado Wildy Souza.

Um sonho de longa data que, felizmente, consegui realizar foi trabalhar com o Dan Swanö. Ele trabalhou no material no esquema de stem mastering, processo que permite ao engenheiro ajustar cada grupo de instrumentos separadamente e, portanto, com muito mais precisão. Ele também me deu orientações importantes para a gravação dos vocais e para a timbragem das guitarras base.

O Cactek lançou também em formato físico o EP de estreia. Valorizando o material físico. Eu como colecionador, valorizo muito essas iniciativas, em meio a um mundo digitalizado. Qual a sua visão sobre a polarização do streaming?

Acho que o streaming mudou a forma como as pessoas veem a música e, em geral, desvalorizou o trabalho do músico porque o público passou a ver essa forma de arte como algo que deve estar disponível sempre de forma imediata e gratuita. Claro que há a praticidade de encontrar quase qualquer coisa a qualquer momento, mas, por exemplo, quando eu era garoto, se eu comprasse um disco e, ao chegar em casa para ouvir, não curtisse tanto o material, eu insistiria no dia seguinte, ouviria o álbum inteiro de novo e, muito provavelmente, a coisa começaria a fazer sentido na minha cabeça. Claro que eu não amava absolutamente todo CD que eu comprava, mas havia um esforço de digerir e entender coisas novas. Não acho que as pessoas façam mais isso, ou, se fazem, creio que sejam uma minoria. As próprias plataformas de streaming contribuem muito para essa desvalorização da arte com a remuneração pífia que oferecem. Nem a pirataria teve um efeito tão nefasto sobre a renda dos músicos, porque, na época dos eMules da vida, a pessoa até baixava o seu disco, mas, se curtisse, acabava comprando a mídia física. Hoje em dia, com a legitimidade das plataformas de streaming, o cara paga uma assinatura de trinta reais e, quando ouve a sua música, sai com a sensação de que, de fato, já ajudou a banda e acaba não comprando uma cópia. Aí vem uma turma com esse papo de que, hoje em dia, músico faz dinheiro vendendo merch em show. Só que, se você coloca na ponta do lápis o investimento necessário para botar a banda num palco, a conta não fecha. Se a gente vê grandes nomes que tocam em arenas lotadas fazendo vaquinha para mobiliar o apartamento ou pagar um tratamento de saúde, imagine o sufoco da galera underground.


Musicalmente, o Death Metal praticado pelo projeto é bem peculiar e soa com bastante personalidade. Tendo todas as características do estilo, mas indo um pouco além. Quais as influencias para a parte composicional?

Bem, há as referências óbvias, como Death e Carcass, e outras mais inesperadas ou atípicas, como o Wander Taffo, cujo trabalho marcou muita gente da minha idade no Brasil. Mas a ideia sempre foi fazer algo novo com base nesses elementos, sobretudo em termos estruturais. Não curto fazer aquele esquema tradicional de introdução, verso, ponte, refrão, repetir tudo, solo e último refrão. Na prática, eu quero que o ouvinte não consiga presumir o que vai acontecer na música, a não ser que essa seja a minha intenção em algum ponto, já que vejo a narrativa musical como um processo de geração de expectativa aliada à satisfação ou frustração dessa expectativa. Então, na música do Cactek, eu trabalho muito mais com alusão a um tema principal e com o desenvolvimento desse tema do que com repetição. Depois da primeira vez que você ouve uma melodia ou um riff, não há necessidade de repetir exatamente a mesma coisa — posso mencionar aquela ideia mais adiante e o seu cérebro, naturalmente, acaba ligando os pontos.

Sobre o cenário metálico como um todo e a influência de terceiros buscando cancelamentos de grandes nomes mediante a acusações duvidosas, o quanto isso prejudica o Heavy Metal?

O cancelamento é um linchamento virtual com repercussões absolutamente violentas e concretas, e está sujeito aos mesmos erros de julgamento do ato físico — afinal, também consiste em uma turba com sede de sangue tentando eliminar a existência de alguém cuja presença é considerada inaceitável. O efeito disso é que, cada vez mais, a internet é uma câmara de eco na qual ou você repete uma cartilha palavra por palavra, ou é esmagado por expressar algo que não se encaixa em determinado discurso. Isso é um golpe seríssimo contra o pensamento racional, a arte e o avanço da nossa cultura, até porque a massa é sempre burra. Há muitas injustiças no mundo, inclusive questões estruturais que prejudicam gravemente setores inteiros da sociedade, e é lógico que esse tipo de coisa deve ser combatido. Mas houve uma cooptação dos movimentos minoritários pela galera com grana e, sem que os participantes percebessem, as pautas que clamavam por justiça deram lugar a uma gana de silenciar o outro. Na prática, isso dissolveu a possibilidade de um fórum aberto para avanço de pautas sociais legítimas e implantou bolhas com discursos prontos, e isso tirou a pouca força que os cidadãos tinham contra quem, de fato, detém o poder. Passou a haver uma adoração à vitimização, pois passou-se a entender a vítima como detentora da verdade absoluta.

O problema é que todos somos vítimas de alguma coisa e, para piorar, é perfeitamente possível ser vítima de algo e entender tudo errado. Só que as pessoas encontram nessa alcunha de vítima um passe livre para falar qualquer coisa alinhada às pautas da bolha sem possibilidade de argumentação do outro, e isso tem um enorme capital social, autoriza o indivíduo a fazer absurdos em nome de reparação. Conceitos como apropriação cultural e lugar de fala usam a premissa válida do peso da experiência, mas também se escoram nessa suposta inquestionabilidade da vítima, e têm como efeito a anulação de mecanismos intrínsecos e inevitáveis da vida em sociedade: a cultura é, em si, fruto da combinação de elementos diversos; condenar essa relação de influência mútua entre duas partes, dada a sua inevitabilidade, é análogo à igreja atribuir a todo homem um pecado original advindo da natureza igualmente inexorável da concepção. Você pega algo inevitável, diz que esse algo inevitável é uma coisa monstruosa, e se coloca na posição de credor dessa dita falta da qual ninguém pode escapar.

É claro que esse clima de caça às bruxas afeta também o metal, mas, sinceramente, acho que, no nosso meio, quem embarca nessa onda acabaria, de qualquer forma, fora dele a longo prazo, ou como público das bandas mais superficiais do estilo. Sempre houve cagadores de regras no metal tentando ditar o que pode ou não ser feito, e nenhum avanço da arte se deve a esse pessoal. Para mim, o metal genuíno não se alinha a pautas e é, por excelência, a música do indivíduo contra o mundo. Há quem pense diferente, e há certamente farta oferta de bandas que atendem a esse público, mas esse tipo de coisa não me interessa minimamente. Vou continuar ouvindo Motörhead e Pantera.


O debut já tem uma previsão de lançamento? Referente a shows, teremos o Cactek ao vivo?

Bem, do meu ponto de vista, o debut é justamente o EP que acabou de sair — mas entendo que você deve estar se referindo a um álbum inteiro. A minha intenção é sim que o próximo trabalho tenha umas sete faixas ou, com sorte, até mais. Mas isso vai depender de uma série de fatores. Vamos ver como a coisa avança.

Em relação a shows, como eu disse há pouco, é certamente um plano, mas algo a médio ou longo prazo. A minha prioridade agora é continuar divulgando o Cactek e trabalhando nas faixas novas.

Gostaria que nos falasse quais bandas do cenário nacional poderia nos recomendar e porquê. Deixo o espaço final para você ou para o Homem-Cacto (risos). Que a chama do Death Metal nunca se apague e sigam nos guiando através de sua podridão.

Nosso país já gerou tantas bandas bacanas que fica difícil escolher algumas, mas vou deixar de lado as clássicas e as já muito conhecidas para citar um projeto que tenho acompanhado com muito gosto e se chama Hanoi Underground Opera. O Fabrizzio é um guitarrista excelente e um compositor criativo, cheio de referências interessantes, de forma que o som do projeto é bastante singular. E os riffs colam na cabeça.

Também indico o Siriun, que faz um bom death metal com identidade e conta com ótimos músicos, inclusive o Bráulio Drummond na bateria.

Quanto ao espaço final, acho bom eu avisar que era o homem-cacto respondendo desde o início! (mais risos)

Falando sério, agradeço muito pelo espaço e pelas perguntas relevantes. O trabalho que o Heavy and Hell faz é importantíssimo para a cena nacional e desejo tudo de melhor para vocês. Também agradeço aos leitores desta entrevista e a todo mundo que dá força para o Cactek.

 

Contatos:

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